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O
cigarro e o aparelho respiratório - Dr. Daniel Deheinzelin
Dr.
Daniel Deheinzelin é professor livre-docente de Pneumologia pela
Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo Libanês,
foi diretor-clínico do Hospital A C Camargo, o Hospital do Câncer
de São Paulo. Atualmente integra o corpo clínico do Hospital
Sírio-Libanês.
Nicotina é uma das drogas que provocam maior dependência
física e o cigarro não passa de um dispositivo atraente
para facilitar seu consumo. Tudo ocorre de forma muito simples: a pessoa
põe o cigarro na boca e aspira a fumaça que alcança
os pulmões. Dos pulmões, a nicotina passa rapidamente para
a circulação, espalha-se pelo corpo inteiro e atinge o cérebro
onde exerce sua ação aditiva. Na verdade, ela chega mais
depressa ao cérebro quando aspirada do que quando injetada na veia.
Não tenho a menor dúvida de que todo fumante gostaria de
deixar de fumar. Mesmo aqueles que afirmam – “Não,
não estou interessado” – falam assim porque não
conseguem abandonar o cigarro e não porque não o queiram.
A crise de abstinência de nicotina manifesta-se em minutos e é
pior do que a de outros alcaloides, como os que existem na maconha, na
cocaína e na heroína. Esses ainda permitem ao usuário
ficar muitas horas longe deles. A nicotina não dá descanso.
A pessoa passa duas horas no cinema. Quando as luzes se acendem, está
tão desesperada para fumar que desconsidera os avisos e acende
o cigarro ainda na sala de exibição.
O fumante sabe que cigarro dá câncer, infarto, derrame cerebral,
mas não se abala com isso. O ser humano não liga para as
piores desgraças que lhe possam acontecer, desde que ocorram num
futuro distante. A espécie foi selecionada assim. De que adiantava
ficar planejando a vida para os vinte anos seguintes, se o homem primitivo
não sabia se, no fim do dia, estaria vivo para voltar à
caverna trazendo a caça que fora buscar para alimentar a família?
AÇÃO DA NICOTINA NO APARELHO RESPIRATÓRIO
Drauzio - Em geral, a dependência da nicotina começa
na adolescência. O que acontece com o pulmão do adolescente
quando começa a fumar.
Daniel Deheinzelin – Tão logo a pessoa começa
a fumar, tem início uma reação inflamatória
provocada pela temperatura elevada da fumaça, que queima não
só os pulmões, mas toda a via aérea. Prova disso
é o reflexo de tosse que acompanha as baforadas dos principiantes.
Depois, os sintomas desagradáveis desaparecem e progressivamente
vai aumentando o número de cigarros fumados num dia. A combustão
resultante dessa agressão térmica gera partículas
de oxigênio, os chamados radicais livres, que têm a capacidade
de oxidar as estruturas celulares, destruindo a base arquitetônica
dos pulmões.
Dizer que o cigarro faz mal para o pulmão, é apenas parte
da verdade. O cigarro lesa as vias respiratórias inteirinhas. O
revestimento interno do aparelho respiratório não suporta
a toxicidade nem a alta temperatura da fumaça e começa a
sofrer um processo de substituição de células. Além
disso, a produção de muco aumenta muito. Por quê?
Porque o muco funciona como capa protetora do tecido epitelial que reveste
as vias aéreas e pode ajudar a expelir os elementos irritantes
que foram inalados. Nos brônquios, a fumaça também
provoca uma reação inflamatória que provoca destruição
progressiva da árvore brônquica.
Portanto, já no dia em que o adolescente começa a fumar,
e não tardiamente como muitos pensam, a integridade do aparelho
respiratório fica comprometida por duas razões:
a) a destruição dos alvéolos, o que caracteriza uma
doença chamada enfisema pulmonar;
b) a mudança da composição do revestimento dos brônquios,
o que acaba levando à doença conhecida como bronquite.
APARECIMENTO DOS SINTOMAS
Drauzio - Quando esse processo inflamatório passa
a ter manifestação clínica?
Daniel Deheinzelin - O problema é que as manifestações
clínicas custam a aparecer. O pulmão tem uma reserva funcional
muito grande. A pessoa vai perdendo área de troca gasosa, mas consegue
manter a atividade física. Nessa fase, é comum ouvi-la dizer:
“Eu fumo, mas não tenho nenhum problema. Faço tudo
o que sempre fiz. Consigo nadar, jogar bola, correr”. Não
se pode esquecer de que ela pensa estar realizando tudo normalmente porque
não tem idéia de como seria seu fôlego se não
fumasse nem de como estará seu pulmão dez anos mais tarde?
Estudos que tiveram como referência gêmeos univitelinos (gêmeos
idênticos) demonstraram que a função pulmonar do fumante
apresenta sempre alterações importantes não encontradas
no irmão que não fuma.
REAÇÃO DIANTE DOS DANOS CAUSADOS PELO CIGARRO
Drauzio – Que resposta você dá a um
fumante que lhe pergunta a extensão dos danos já causados
pelo cigarro em seu organismo?
Daniel Deheinzelin – Essa pergunta é muito
difícil de responder. Para ser exato, seria necessário repetir
sistematicamente os testes de esforço para acompanhar a evolução
do caso. Não existe um exame isolado que permita determinar a área
lesada do pulmão.
Na verdade, o interesse das pessoas resume-se nisto: saber o tamanho do
estrago, porque sempre há esperança de não ter havido
lesão alguma apesar dos incontáveis cigarros fumados. Agindo
assim, a decisão de largar de fumar pode ser adiada para quando
os sintomas da doença forem mais evidentes.
Drauzio –Na cabeça dos fumantes, existe
uma lógica que não é correta: “Fumo há
40 anos e o cigarro só danificou esse tanto. Para estragar o dobro,
vai levar mais 40 anos. Daqui a 40 anos já estarei morto com certeza.
Então, posso continuar fumando que não fará a menor
diferença”.
Daniel Deheinzelin – Faz muita diferença.
Há um momento em que o estrago cresce de forma exponencial, não
é mais somatório. Esse é um problema sério
para as pessoas com 50, 60 anos que fumam desde a juventude e procuram
o médico, porque já apresentaram a manifestação
de alguma doença. Quando alertadas de que a tendência é
piorar se continuarem fumando, retrucam: “Ah! Mas eu já fumei
30 anos e só agora senti alguma coisa. Por que tenho de parar de
fumar se, por certo, não viverei mais 30 anos?” Sinto dizer
que essas contas nunca estão corretas. Às vezes, basta um
ano para o quadro deteriorar irremediavelmente.
SEMPRE VALE A PENA
Drauzio – O que acontece quando uma pessoa de 50
ou 60 anos, que fumou desde a juventude, para de fumar?
Daniel Deheinzelin - Os benefícios são
muitos. Apesar de não ser possível fazer regredir completamente
a doença causada pelo cigarro – as áreas pulmonares
destruídas pelo enfisema nunca voltarão a ficar sadias,
por exemplo – há a tendência para significativa melhora
funcional. Depois de cinco anos de abstinência, pode-se dizer que
a recuperação é tão boa que vale a pena parar
de fumar qualquer que seja a idade do paciente.
E os benefícios não se restringem apenas ao aparelho respiratório.
Sentidos, como paladar e olfato, também melhoram muito. Quem fuma
não consegue apreciar direito o sabor dos alimentos, nem sente
cheiros porque boca e nariz estão impregnados de fumaça.
LUTA CONTRA A DEPENDÊNCIA
Drauzio – Vamos imaginar pacientes com enfisema
pulmonar em grau avançado a ponto de mal conseguirem movimentar-se
e com muita falta de ar. De acordo com sua experiência, como a maioria
se comporta quando é informada da necessidade premente de parar
de fumar?
Daniel Deheinzelin – É muito difícil
estabelecer uma média, porque as reações variam muito.
Alguns entendem e se dispõem a lutar contra o cigarro. Nesse momento,
porém, estão debilitados e ansiosos o que torna tudo mais
complicado. Outros dizem: “Já entendi. Se estou mesmo perdido,
por que tenho de me impor o sacrifício de não fumar?”,
e continuam fumando.
No entanto, algumas situações estão associadas ao
sucesso na iniciativa de parar de fumar. É muito comum mulheres
deixarem de fumar durante a gravidez. Parece que o instinto materno fala
mais alto. Frequentemente, porém, depois do nascimento da criança,
impelidas por condições ambientais de estresse ou pelas
dificuldades inerentes ao pós-parto, elas voltam a fumar.
Outro grupo que costuma vencer a dependência de nicotina é
constituído pelas pessoas com doença coronariana. Ao se
conscientizarem de que o próximo cigarro pode provocar um acidente
vascular fatal, muitas deixam de fumar.
Drauzio
– Mas nem todas as pessoas com doença coronariana
deixam de fumar, não é mesmo?
Daniel Deheinzelin – Não. Das pessoas que
participam de programas para parar de fumar, mais ou menos 45% alcançam
o objetivo. As outras, mesmo diante da ameaça de morte, continuam
fumando. Como se vê, o impulso é tão forte, que contraria
o mais primário dos instintos, o instinto da sobrevivência.
Drauzio
- É uma dependência brutal que quebra o caráter do
dependente a tal ponto que ele não se preocupa com a própria
sobrevivência.
Daniel Deheinzelin – Ninguém mais discute
que o cigarro seja fator de risco para a doença coronariana. Há
exames que comprovam isso claramente. O indivíduo dá uma
tragada, o médico injeta contraste e observa as reações
na tela do equipamento. O cigarro é um poderoso vasoconstritor.
Não são só as coronárias que se fecham; contraem-se
todas as artérias do corpo, entre elas as artérias cerebrais
e as que vão para o pênis, por exemplo. Por isso, além
de infartos e derrames, o tabaco é responsável pelo comprometimento
da potência sexual.
PROGRAMA DE AJUDA AO FUMANTE
Drauzio – No Hospital do Câncer, há
um ambulatório para o tratamento da dependência de nicotina.
Como funciona?
Daniel Deheinzelin – Esse ambulatório foi
criado porque não dá para pensar em tratamento do câncer,
sem investir na profilaxia e, como todos estão cansados de saber,
o cigarro é uma das principais causas de câncer. Para ter
uma ideia, a cada três casos de câncer, um está ligado
ao consumo de tabaco.
Para participar desse programa, é necessário preencher um
requisito básico: o fumante deve ter superado a fase que chamamos
de contemplação – “Preciso parar de fumar qualquer
dia” – e ingressado na fase de ação: “O
que preciso fazer para deixar de fumar definitivamente?”. Só
assim ele é admitido e passa por uma consulta clínica a
fim de detectar os problemas de saúde relacionados com o cigarro
(hipertensão, insuficiência coronariana, doença pulmonar
obstrutiva) que demandam tratamento imediato.
Simultaneamente, realiza-se uma avaliação psiquiátrica,
pois proporção significativa de distúrbios psiquiátricos
está associada ao tabagismo e, se não forem tratados, dificultarão
o trabalho. Não se trata de psicoterapia. São tratamentos
de curta duração, à base de medicamentos, para pessoas
extremamente ansiosas ou deprimidas. Preenchidas essas exigências,
a pessoa está pronta para ingressar no programa propriamente dito.
Sabe-se que o consumo de tabaco, por questões sociais, está
ligado a dois fatores importantes: a dependência de nicotina e o
hábito de acender o cigarro. A pessoa age compulsivamente tanto
que, às vezes, sem dar-se conta, acende dois ao mesmo tempo. Isso
ocorre não só pela necessidade de nicotina, mas pelo mecanismo
automático de pegar o cigarro e acendê-lo. A pessoa toma
café e acende o cigarro. Vai falar ao telefone, acende um cigarro.
Entra no carro, senta-se diante do computador ou da máquina de
escrever, liga a televisão, acende o cigarro. Esses gestos automáticos
precisam ser interrompidos. Por isso, o tratamento é comportamental,
visando a mudar os hábitos do fumante. Paralelamente, prescreve-se
o uso de emplastros transdérmicos (adesivos), que liberam nicotina
em pequenas doses através da pele, preservando os pulmões
dos efeitos nocivos da fumaça.
Drauzio – Qual a duração do tratamento
e o que deve fazer quem se interessa em participar desse programa?
Daniel Deheinzelin – Durante cinco semanas, a pessoa
deve ir ao hospital para discutir o problema do automatismo e encontrar
um caminho que lhe permita desenvolver novos comportamentos. No mundo
inteiro, esse tipo de programa tem-se mostrado eficiente para ajudar os
fumantes a libertarem-se da dependência e nicotina.
As pessoas interessadas em participar desse programa devem entrar
em contato com Departamento de Tórax do Hospital A C Camargo, o
Hospital do Câncer, em São Paulo.
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