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Ação
e efeitos do álcool
Dr. Ronaldo Laranjeira é médico, coordenador da Unidade de Pesquisa em
Álcool e Drogas na Escola Paulista de Medicina na Universidade Federal
de São Paulo e com PhD em dependência química na Inglaterra.
Quando se fala em dependência química, a preocupação maior é com as drogas
ilícitas, cocaína, maconha, crack, ecstasy, entre tantas outras. No entanto,
o grande inimigo está camuflado sob o manto do socialmente aceitável.
O álcool nem sequer é considerado uma droga que causa dependência física
e psicológica por grande parte da sociedade. Sua venda é livre e ele integra
a cultura atual ligada ao lazer e à sociabilidade. Uma reunião em casa
de amigos, o happy hour depois de um dia estafante, a balada de sábado
à noite, a paradinha no bar na saída do escritório não têm sentido sem
a bebida alcoólica.
O efeito relaxante das doses iniciais, porém, desaparece com o aumento
do consumo. Se o convívio com uma pessoa embriagada incomoda, isso não
é nada diante dos males que o álcool pode causar e que não se restringem
às doenças do fígado. A labilidade emocional que num instante transforma
o alcoolista risonho num indivíduo violento é responsável não só pelo
aumento da criminalidade, mas também pela desestruturação de muitas famílias.
Beber com moderação é possível, mas raros são os que reconhecem estar
fazendo uso abusivo e nocivo do álcool. Muitos ainda não são dependentes,
mas incorrem em riscos que deveriam e poderiam ser evitados. Não se pode
esquecer de que a grande maioria dos acidentes de trânsito ocorre quando
está no volante uma pessoa alcoolizada.
METABOLISMO DO ÁLCOOL
Drauzio – Ninguém injeta álcool na veia. A partir do
momento em que a bebida cai no estômago, qual é o trajeto do álcool no
organismo?
Ronaldo Laranjeira – O álcool é absorvido rapidamente
pelo estômago e duodeno e, em instantes, cai na circulação sanguínea.
O metabolismo no fígado remove de 90% a 98% da droga circulante. Na primeira
passagem pelo fígado, começa a ser parcialmente metabolizado, ou seja,
o organismo procura formas para livrar-se dele, destruindo suas moléculas
e expelindo pequena porcentagem delas pela urina, suor, hálito, etc. O
que sobra desse metabolismo inicial vai exercer sua ação em todo o organismo,
pois são necessárias várias passagens pelo fígado para que ele seja destruído
completamente. É no fígado, portanto, que a estrutura química do álcool
é alterada. O álcool que cai na circulação sofre um processo químico chamado
oxidação que o decompõe em gás carbônico (CO2) e água. Como nesse processo
ocorre liberação de energia, os médicos recomendam evitar bebidas alcoólicas
aos que desejam emagrecer, uma vez que cada grama de álcool ingerido produz
7,1 kcal, valor expressivo diante das 8kcal por grama de gordura e das
4kcal por grama de açúcar ou proteína.
Um adulto de 70kg consegue metabolizar de 5 a 10 gramas de álcool por
hora. Como um drinque contém, em média, de 12 a 15 gramas, a droga acumula-se
progressivamente no organismo, mesmo em quem bebe apenas um drinque por
hora.
Drauzio – Quer dizer que a capacidade de o fígado destruir
o álcool é limitada?
Ronaldo Laranjeira – É limitada, mas constante. Leva
mais ou menos uma hora para o fígado metabolizar um copo de vinho e não
há nada que se possa fazer para acelerar esse processo. Então, se a pessoa
tomou dez copos de vinho, vai ficar com álcool no sangue por pelo menos
dez horas. As pessoas perguntam se glicose ou café forte, por exemplo,
ajudam a eliminar o álcool mais depressa. Isso não acontece sob hipótese
alguma.
Drauzio – O fígado tem a capacidade de metabolizar um
copo de vinho por hora. Um copo de vinho equivale a uma latinha de cerveja
ou a uma dose de destilado…
Ronaldo Laranjeira – Equivale a uma dose bem pequena,
50ml de destilado. É o que cabe naqueles medidores convencionais usados
em bares ou em uma xícara pequena de café. Esse é o tamanho da dose da
qual o organismo consegue livrar-se em uma hora.
Se alguém bebeu demais e está inconveniente, a tendência das pessoas ao
redor é colocá-lo debaixo do chuveiro e enchê-lo de café forte. No entanto,
o máximo que conseguem com tais medidas é ter um bêbado desperto, porque
ele continuará alcoolizado. No caso de intoxicação alcoólica, o melhor
é deixar a pessoa dormir o tempo necessário para livrar-se do álcool que
bebeu em excesso. Ter conhecimento dessas características do metabolismo
do álcool é muito importante para estabelecer um parâmetro em relação
ao beber e dirigir. Quem bebeu um copo de chope ou de vinho deve esperar
pelo menos uma hora para poder dirigir um automóvel com mais segurança.
Drauzio – É uma pena, mas ninguém respeita essa limitação.
Ronaldo Laranjeira – Ninguém faz isso e todos pagamos
alto preço por esse descaso. O número de mortes de jovens relacionadas
ao beber e dirigir é muito grande. Os dados são assustadores. Cerca de
50 mil brasileiros morrem por ano nesse tipo de acidente, mais ou menos
o mesmo número de soldados mortos na Guerra do Vietnam. Essas informações
devem ser enfatizadas até se integrarem no dia a dia das pessoas para
que elas se conscientizem e se programem corretamente. Se vão a um restaurante
ou a um bar e bebem dois ou três copos de vinho ou de cerveja, precisam
saber que o melhor é esperar o efeito do álcool desaparecer antes de pegar
o carro outra vez ou, então, deixar que outra pessoa dirija em seu lugar.
Drauzio – Você disse que metabolizamos um copo de vinho
por hora e que, se tomarmos dez copos de vinho, somente em dez horas o
fígado se livrará de todo o álcool ingerido. Ele consegue eliminar o álcool
ingerido completamente?
Ronaldo Laranjeira – Em geral, consegue. No entanto,
se o fígado for continuamente estimulado por longos períodos de exposição
ao álcool, nem sempre dará conta de eliminá-lo por completo sem ser lesado.
Dentro do processo de entrar álcool e sair CO2, existe a formação de uma
substância intermediária, o acetaldeído, que é muito mais tóxica e lesiva
para o fígado e para o organismo como um todo do que o próprio álcool.
Drauzio – Você disse que o álcool é absorvido pelas paredes
do estômago, cai na circulação e na primeira passagem pelo fígado é parcialmente
destruído. Para onde vai o que sobra desse metabolismo inicial?
Ronaldo Laranjeira – Na realidade, o álcool é uma droga
que age do fio de cabelo até o dedão do pé, mas a ação farmacológica inicial
mais identificável é o efeito cerebral caracterizado por certo torpor
e sensação de relaxamento. Em doses baixas, o efeito pode ser até agradável.
No entanto, se as doses forem aumentadas agudamente, além do efeito relaxante
ocorre torpor mais intenso e até coma alcoólico, que é raro, mas não improvável.
Metabolismo do álcool
Usuários crônicos de álcool costumam nele obter 50% das calorias necessárias
para o metabolismo. Por isso, frequentemente desenvolvem deficiências
nutricionais de proteína e vitaminas do complexo B.
Tolerância e alcoolismo crônico
A resistência aos efeitos colaterais do álcool está diretamente associada
ao desenvolvimento da tolerância e ao alcoolismo.
Horas depois da ingestão exagerada de álcool, embora a concentração da
droga circulante ainda esteja muito alta, a bebedeira pode passar. Esse
fenômeno é conhecido como tolerância aguda.
O tipo agudo é diferente da tolerância crônica do bebedor contumaz, que
lhe permite manter aparência de sobriedade mesmo depois de ingerir quantidades
elevadas da droga. Doses de álcool entre 400mg/dl e 500 mg/dl, que muitas
vezes levam o bebedor ocasional ao coma ou à morte, podem ser suportadas
com sintomas mínimos pelos usuários crônicos.
Diversos estudos demonstraram que as pessoas capazes de resistir ao efeito
embriagante do álcool, estatisticamente, apresentam maior tendência a
tornarem-se dependentes.
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