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"O
que falar para alguém que está prestes à morrer?"
- Nota de Falecimento de R. por Frederico Mattos
Meu nome é Frederico Mattos, tenho 31 anos, sou psicólogo
e escrevo o http://sobreavida.com/, um blog sobre coisas da vida e relacionamentos.
Um leitor me enviou esse email:
“Olá Fred,
Já que a Dona M. tomou coragem e confessou que nunca amou o marido
de 30 anos eu tomei a liberdade de mandar esse e-mail.
Enviei logo cedo após receber meus remédios para que você
pudesse ler logo que acordasse. Espero que não se importe.
Estou há uma semana internado num bom hospital e entre um mal-estar
e outro tenho lido seu blog. Logo que me internei um amigo me disse: acho
que agora é hora de pensar sobre a vida. Sou viciado em tecnologia,
peguei meu iPad (foi a única coisa que pedi que os médicos
não me tirassem) e digitei no Google “sobre a vida”.
Surgiu seu blog e confesso que pensei “mais um blog de merda falando
blábláblá”. Não dei confiança,
mas depois de não achar nada muito intessante voltei ali.
Tenho 28 anos, minha barba cultivada com gosto para que eu aparente mais
idade está caindo, isso me aborrece.
A questão que me intriga é que vou morrer e não sei
o que fazer diante da morte. Vou morrer em breve, talvez eu não
receba sua resposta. Claro que não estou pendente disso para morrer
(isso está infelizmente fora de minhas mãos), mas filhadaputamente
o padre que veio me visitar e não gostei do que ouvi. Sei que ele
trouxe palavras bondosas, mas tão vazias de real sentido para mim
que aproveitei que eu estava vomitando que nem um desgraçado para
enxotar aquele velho de batina. Minha doença me consome rapidamente
e não acredito em nada para além desta vida, nem preciso
acreditar. Sou ateu (o máximo de fé que tenho é fazer
figuinhas, pois mamãe me ensinou e lembro dela quando faço)
e sinceramente não me culpo por isso.
Tive uma vida cheia de acontecimentos, aproveitei tudo mesmo, sem exageros
ou excentricidades. Minha doença é um tipo de problema genético,
raro e fatal. Os médicos não afirmam nada (eles sempre estão
um pouco emburrados), mas já pesquisei na internet e realmente
acho que vou bater as botas mais rápido do que eu queria.
Fiquei pensando o que você, como psicólogo, teria a dizer
para alguém que tem algunas horas ou dias de vida ainda pela frente?
Se eu não conseguir ler a resposta espero que ajude alguém
nas mesmas condições ou que ajude qualquer um.
Abraço,
R.”
Caro R.
Acho que não estou em posição de aconselhar alguém
que está em uma condição única e porque não
dizer privilegiada como a sua. Sim, privilegiada. Estar diante do próprio
fim e fazer a pergunta certa não é tão simples.
Já que você digitou no Google SOBRE A VIDA, vou falar algumas
coisas que penso sobre a vida. Espero que sirvam.
Na vida eu finjo que não tenho medo da morte faz muito tempo. Eu
tenho construído um castelo de certezas, de virtudes e de sentido
para simplesmente negar o fato de que vou morrer, assim como você.
Na vida vi que todas as amizades que tenho são para me deixar menos
sozinho comigo mesmo. Além disso evitar saber que tudo irá
acabar de um momento para o outro. Mas elas dão um colorido diferente
para o passar dos anos. Algumas valem a pena cultivar, outras são
passageiras e deixam uma marca, algumas temos o dever moral de levar para
a vida inteira.
Na vida não tenho certeza de nada e noto que a maior parte das
pessoas não tem. Mas não perdemos a irresístivel
atração em fingir que sabemos de tudo. Antes eu ouvia os
bons conselhos, agora duvido deles. Sempre me parecem demasiado polidos
ou conservadores. Como aquelas tias velhas que tem medo de atravessar
a rua e recomendam que você não faça o mesmo.
Com as críticas ainda tenho dificuldades, confesso que quando me
dizem que sou metido a sabichão ainda fico meio doído. Acho
que é pelo fato de que a pessoa ainda não me conheceu de
verdade e me julga pelas minhas defesas. A prepotência que me resta
é só um jeito falsamente forte que encontrei para que eu
não seja inundado pelo mar de amor que sinto, mas me fragiliza.
Pelo visto você é uma pessoa que foi agraciada pelo bem estar
financeiro. Isso é excelente, com o tempo aprendi que o dinheiro
pode ser um grande amigo de boas realizações. Que ele é
a chave mestra que reflete o fruto do meu trabalho e que me abre portas
para conhecer coisas que eu nunca poderia sem ele. O dinheiro não
é meu inimigo e nem meu amigo, apenas um cúmplice daquilo
que quero ser. O meu dinheiro sou eu em forma de notas. O dinheiro de
cada um reflete o que a pessoa é.
Também me parece que você é muito amado pelas pessoas.
Essencialmente cercado de pessoas boas que te recomendam no momento mais
difícil que pense sobre a vida. Isso parece que é a grande
fórmula para viver e morrer feliz. Nos cercamos de muitas pessoas
que nos fazem mal, nos colocam para baixo e subestimam nossa capacidade.
Elas querem nos ajudar de um jeito que reforça nossa infantilidade
e passividade na vida. Com o tempo procurei selecionar as pessoas do meu
convívio. Conheci amigos maravilhosos, terminei relacionamentos
que me faziam mal e cultivei bons hábitos como me encontrar sempre
que possível com as pessoas que eu amo. Meus livros que eu tanto
adorava ler com exclusividade absoluta agora estão um pouco de
lado. Ainda os amo, mas livros sem pessoas são apenas folhas sem
sentido. O verdadeiro livro que sempre quis escrever já está
sendo escrito no longo dos meus dias. Acho que o seu livro não-publicado
deve ter excelentes páginas e narrativas memoráveis. Deixe
que isso te alegre, inclusive agora.
Com o tempo eu percebi que a cereja do bolo da minha vida não foi
composta de grandes eventos ou celebrações. Mas foi no tecido
invisível dos minutos discretos que ninguém reparava. Eu
sempre soube que aqueles pequenos gestos de gentileza é que realmente
fazem a diferença. Acordar um pouco mais cedo para dar a mão
para uma pessoa. Levantar da cama antes e pegar o copo d’água.
Consolar uma lágrima que não foi anunciada. Pequenas coisas
pelas quais você não vai ganhar nenhum prêmio ou recompensa
e ainda assim devem ser feitas.
Meu caro R. tenho medo, muito medo de tudo. Medo de falhar, fracassar,
decepcionar, fraquejar, deprimir até parar com tudo e ficar maluco,
as vezes enfrento dias difíceis (na minha cabeça) que penso
que não vou aguentar. Mas administro esse medo da seguinte maneira,
sei que são apenas medos, nada além disso. Um jeito meio
menino de fantasiar as coisas maiores do que realmente são só
para que depois eu brinque de super-homem. Afinal quanto maior meu obstáculo,
mais eu acho que fui invencível na superação.
Hoje tenho rido muito mais de mim, sou um desastrado. Não sei cortar
uma melancia sem sujar toda a pia e ela ficar parecida com um um leque
torto e feio. Me perco no transito, mesmo com GPS. Falo coisas fora de
hora. Confesso meu amor antes do tempo. Tolero coisas intoleráveis
por mais tempo que devia. Sou um bobo incorrigível. Mas, afinal,
essa é a versão improvisada de mim mesmo, sei que com o
tempo esse eu de hoje será uma lembrança pálida no
eu de amanhã. Então rir de mim me ajudou a não me
magoar tanto ou me levar tão à sério), afinal todos
somos rascunhos da vida. Perdidos como ratos pelados.
Lidar com pessoas sempre foi um desafio para mim. Sou sensível
ao extremo, um sorriso me levanta e um olhar de desaprovação
me derruba. Comecei a entender, a duras penas que não posso ter
controle do que os outros sentem por mim. Se você me odeia problema
seu, se me ama também. Pode parecer uma visão radical ou
uma fala grosseira. Mas se pudesse me ouvir agora dizendo isso seria com
uma voz doce e com sorriso nos olhos. O ódio que sente por mim
é responsabilidade sua, o amor que sente também. O máximo
que posso fazer é dançar em volta do seu coração
até que seu ódio se acalme e me veja humano (com o que tenho
de bom incluído) e seu amor se consolide e me veja humano (com
o que tenho de pior incluído).
Acho que o mais difícil de morrer deve ser imaginar que não
veremos mais aqueles que amamos. Quando trabalhei com pessoas com câncer
(doença nem sempre rápida e fatal) aprendi que a melhor
despedida acontece com as relações que foram mais completas
e sem falsidades. Se tivemos uma relação truncada, conflituosa
e cheia de pendências o luto é mais difícil. Nesse
momento tente diminuir as suas pendências e diga o que vem no fundo
do seu coração para os outros. Não hesite, você
não tem mais nada a perder. Literalmente.
Posso dizer que o amor e o trabalho sempre me guiaram. Mas sei que o amor
é um enigma. Hoje me parece muito mais um grande campo em que muitos
eventos acontecem por ali. Toda a vez que tentei cercar demais a pessoa
amada ela se foi, deixar ela pra lá em demasia também não
funcionou. A melhor garantia que posso oferecer hoje é que onde
eu estiver estarei ali.
Já fique muito preso ao passado e tudo o que não funcionou
ali. Também já fiquei afoito para que o futuro chegasse
logo e ele nunca chegou quando eu queria. Então decidi colocar
o rabo no meio das pernas e viver aquilo que eu consigo hoje. As vezes
minha cabeça me engana e tenta me sequestrar para frente ou para
trás. Então eu digo para minha mente “ei, dá
uma olhadinha nesse momento entediante, podemos fazer algo com isso, que
tal?” e numa fração de segundos a minha mente faceira
corre para brincar comigo no presente de novo.
Sou tão jovem quanto você, então não encare
como presunção tudo o que eu disse. Posso garantir que existem
vidas muito mais interessantes que a minha para você tomar por exemplo.
Minhas grandes vivências aconteceram mais no fundo do meu coração
do que na vida concreta. No entanto, foi a vida que me coube viver e que
me satisfez até agora. A sua vida é a melhor que você
pode viver, olhe com compaixão por ela, nada acrescente nela e
muito menos mutile. Tudo ali é do tamanho que devia ter. Até
sua barba que se despediu de você.
Quando olhamos uma vela temos a ilusão de que ela irá apagar
quando a cera chegar ao fim. As vezes acaba antes, outras a luz continua
depois. No seu caso, sua vela está te surpreendendo, em alguns
minutos. A minha pode me surpreender, assim com todas as pessoas que amamos.
Estamos no mesmo barco.
Minha curiosidade (mal que não quero tirar de mim) vai me dizer
para que dê um retorno caso tenha conseguido ler. Sei que os leitores
do blog vão pedir o mesmo. Então se puder, mande um sinal
de fumaça. Sei que esse texto vai ajudar mais quem ficará
vivo (ou finge que está vivo como eu) por um pouco mais de tempo
que você. Mas se te ajudar em algo, já fico mais que satisfeito.
Ah, se eu pudesse falar uma última coisa seria morra o mais vivo
que puder…
Um abraço meu caro, longa vida enquanto ela existir!
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Hoje recebo esse recado:
Meu irmão pediu que eu enviasse esse e-mail para você assim
que falecesse. Ele me mostrou o texto do seu blog emocionado e falou coisas
muito bonitas sobre o amor que sentia por todos nós e se desculpava
se nem sempre estava tão presente quanto gostaria. Acrescento que
ele partiu essa madrugada de sexta-feira tranquilamente e sem dor, abraçado
com papai e seu iPad (inseparável, aposto que vai procurar o Steve
Jobs). Sentiremos muito a falta daquele menino que sempre tinha uma palavra
carinhosa e um sorriso pronto nos lábios.
"Querido Fred,
Fiquei comovido com a honestidade em revelar aspectos da sua vida de um
jeito tão afetuoso, gentil e claro. Eu também não
sei cortar melancia direito. Achei de extremo carinho você não
tentar me convencer de nada como fez o padre.
Nas suas palavras vi que a maior expressão do espiritual é
a própria vida e as pessoas à nossa volta: o amor que me
une à minha família e os meus amigos. Pensando assim, o
meu quarto estava absurdamente lotado de coisas espirituais agora à
pouco e pedi que todos me deixassem à sós por minutos para
poder escrever essa mensagem. Prefiro que ela seja entregue à você
quando eu morrer. Agora posso falar sem peso sobre a morte, pois sei que
deixarei meu legado com todos: minha memória.
Meus amigos trouxeram um violão e me cantaram músicas que
eu gosto. Meu pai fez bolo de laranja com suco de cajú de dar lombriga.
Minha irmã recitou um poema de Vinícius de Moraes que me
emociona. Minha namorada só chora e me beija (energia feminina
pura) - bem que eu podia durar mais uns dias ;). Meu primo trouxe um pendrive
com imagens do meu cachorro latindo para a camera. Mamãe já
falecida, me veio fortemente na memória. Não tenho a pretensão
de reencontrá-la, pois no meu coração ela nunca partiu.
Estou meio sensível hoje! heheheh
Obrigado pela rapidez e prontidão em me responder, nem esperava
um post para mim (mentira) e senti o carinho dos seus leitores. Se puder
crie uma nota de falecimento no Facebook e peça a eles que compartilhem
seu texto com todo mundo (quero ser um morto virtual famoso rsrsr). As
pessoas à sua volta tem sorte em tê-lo em suas vidas, pena
não ter sido seu paciente ou amigo. Fucei na internet (sou stalker)
e vi que fará 31 anos em breve, parabéns psicólogo!
Após cremado, quando as cinzas forem atiradas ao mar digam: aqui
nada um homem feliz! :)
Seguirei seu conselho: quero estar bem vivo quando eu morrer!
Um abraço e longa vida a você também...
Do amigo que parte, R."
http://www.youtube.com/watch?v=L3eiOMQVUqs
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